Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

Rayssa Molinari

Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.

Meninas e Mulheres Negras no Seu Tempo: Cristiele França

Em entrevista exclusiva, a radialista Cristiele França conta como entrou no jornalismo e como idealizou o programa Mojubá

Supervisão I’sis Almeida/Portal Black Fem

Foto: Arquivo Pessoal – Identidade Visual: Rayssa Molinari//Portal Black Fem

O rádio é mais do que um simples canal de comunicação; ele é um portal para o mundo, onde ecoam histórias, músicas e informações. Os profissionais da área são aqueles cujas vozes atravessam ondas e gerações, criando laços e trazendo conhecimento através da informação. Mas, com a revolução digital, o cenário mudou: surgiram perguntas sobre o futuro do rádio. Será que ele sobreviveria ao avanço iminente das novas tecnologias?

A resposta vem da própria essência do rádio, que busca sempre a integração midiática para se reinventar. No meio desse movimento, a radialista Cristiele França, da Rádio Metrópole de Salvador, prova que o rádio continua sendo um espaço poderoso, especialmente para dar voz à cultura negra. 

Formada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo pela Faculdade Social da Bahia, Cristiele é apresentadora do Programa Mojubá, transmitido pela Rádio Metrópole FM, que traz as religiões de matrizes africanas como principal fonte de discussões.

Como Ekedi do terreiro Ilê Axé Oyá Mesi, localizado em Nova Brasília de Valéria, e filha de Oxum com Xangô, a comunicadora desafia o racismo religioso utilizando a voz para educar a população. Trabalho que lhe concedeu, no ano passado, a Medalha Zumbi dos Palmares recebida na Câmara Municipal de Salvador.

No ar, sua voz não só informa, mas celebra, questiona e reafirma. O rádio continua essencial, seja para quem esteja no trânsito, fazendo tarefas de casa ou até mesmo em momentos de lazer. E Cristiele, como tantos outros radialistas, em entrevista exclusiva ao Portal Black Fem, conta que o caminho é a conexão entre passado e futuro, tradição e inovação.

Lívia Oliveira — Como foi a sua entrada no jornalismo? Foi algo que sempre quis ou algo/alguém te inspirou?

Cristiele França: Foi uma escolha bem aleatória, para ser sincera. Quando eu fiz vestibular, não tinha em mente que era esse caminho mesmo que eu queria trilhar, porque ainda tinha algumas dúvidas. Meu irmão tinha entrado recentemente também na universidade. Ele tinha escolhido administração, e aí tinha colocado jornalismo como segunda opção. A gente sempre brincou muito quando criança de apresentação de programa de TV. E na hora de fazer a minha escolha, eu coloquei o jornalismo como primeira opção por achar que seria algo mais criativo, mais dinâmico, mais interessante.

Fiz a escolha e não estava nessa perspectiva toda de ser aprovada, havia certo tempo que eu tinha saído do ensino médio e não tinha feito cursinho. Fui aprovada, fomos correr atrás da matrícula, porque a universidade particular, se hoje em dia não é tão em conta, naquele tempo também não era, por volta de 2004 e 2005. Não era uma coisa que eu tinha como meta de vida, mas ao longo eu fui me identificando muito.

Lívia Oliveira — E por que você decidiu ingressar no rádio e se tornar radialista? 

Cristiele França: Passei a ouvir mais rádio, ouvia muito já Metrópole FM, eu ouvia o programa “Aí vêm elas”, que era apresentado por Rita Batista, Denise Magnavita e Jessica Senra. Eu tinha aquilo como referência, pensando “esse programa é massa, seria interessante se um dia eu chegasse lá”. E fui tomando gosto ao longo da universidade. Quando tivemos a disciplina de rádio também eu me interessei muito, me identifiquei muito com aquele universo.

Nas oficinas de rádio e TV são as que você mais pode brincar, você pode perceber ou não a sua identificação com aquele segmento. As oficinas são coisa mais práticas, mais do dia a dia, isso tudo me encantava muito mais do que a ideia de fazer jornalismo escrevendo matérias, sentada dentro de uma relação. A prática dentro da faculdade já me deu essa vontade de seguir mesmo pelo rádio ou pela TV, tanto que o meu produto final o meu tcc foi um mini documentário de rádio.

Lívia Oliveira — O rádio é um meio de comunicação que se reinventa com o tempo, inclusive com a popularização da televisão se achou que o rádio iria acabar. Quais mudanças você percebeu desde que começou na profissão?

Cristiele França: Eu acho que a gente vem ao longo desses anos percebendo a necessidade de ser o menos formal possível, para se aproximar mesmo na linguagem de quem nos ouve. Não adianta você falar de uma forma muito rebuscada, com termos muito técnicos, porque isso só afasta o apresentador, jornalista e radialista do público ouvinte. Essa é uma das principais mudanças que eu vim percebendo.

E com a chegada de outras tecnologias, foi se agregando o rádio com essas outras ferramentas, tanto que hoje para falar na Metrópole, e assim a gente vê também em outros veículos e em outros programas, a gente precisa estar maquiada, organizada, com cabelo ok, porque além de ser ouvida, você também está sendo vista. 

Lívia Oliveira — Como e quando pensou em juntar a sua religiosidade com a comunicação?

Cristiele França: Veio devido ao lugar em que eu estava inserida. Já participei da rádio Bandnews FM, fiz parte da Tudo FM, que hoje não existe mais, e por vários outros veículos que já passei, eu dizia que só era mais uma jornalista dando a informação. Mas a Metrópole me permitiu criar uma identidade, meu jeito de ser, meu jeito de falar e comunicar, inclusive deixando muito claro o meu segmento religioso. 

Mário Kertész  brincava comigo quando eu entrava no ar perguntando se eu era do candomblé e qual era o orixá que regia aquele dia, quais eram as características de Exú… Isso foi me abrindo esse olhar, a partir do momento que me deu essa abertura eu fui vendo que era possível.

Tive a ideia de escrever um projeto para um programa de rádio com uma outra pessoa, era um programa mais focado na negritude, não somente na religião, para também ser semanal. A gente chegou a gravar piloto, mas não foi para frente. Essa pessoa saiu da rádio, eu fiquei ainda com esse desejo de ter um programa e foi aí que me surgiu que gente não vai falar de negritude de um modo geral, mas o que eu falo com propriedade e gosto de conversar é sobre candomblé. 

Reescrevi o projeto colocando isso como possibilidade de falar sobre a religião de matriz africana sem entrar em fundamentos, mas com essa tentativa de quebrar os estereótipos. Mandei para eles no início de 2018. Numa quarta-feira, soube que o programa tinha sido aprovado e que iria começar no sábado. Tive menos de uma semana para preparar o programa. Inicialmente ele foi ao ar aos sábados, às 8h, depois mudou de horário novamente para segunda-feira às 19h até ficar neste dia e horário que ele está atualmente, que é toda quinta-feira, às 19h.

Lívia Oliveira — Sabemos que o programa Mojubá trata de assuntos relacionados às religiões de matriz africana. Qual a relevância de discutir esses temas no rádio, especialmente em uma cidade como Salvador? E como é a receptividade?

Cristiele França: Eu acho de super relevância, visto que a gente vê e ouve todos os dias muitos casos de preconceito religioso, o tempo todo, em cada esquina que a gente vai somos bombardeados com esse tipo de informação. E me chamava a atenção justamente pelo coeficiente de negros que a gente tem aqui na cidade e que eles não tinham um programa sério em um meio de comunicação sério que se dedicasse a abordar esses assuntos, não somente trazer as denúncias de casos de intolerância, mas também de mostrar a beleza que a religião tem.

Eu sempre tive a preocupação no rádio de ter em mente que estava falando apenas para aqueles que já são do candomblé, mas principalmente ter sempre como meta falar para aqueles que não são, aqueles que não compreendem o que é, por exemplo, um ebó arriado numa esquina, numa encruzilhada. O objetivo sempre foi esse: tirar da sombra, trazer a realidade nua e crua como ela é, mostrando esse lado belo e o sentido de cada coisa, dentro do candomblé.

Ao longo dessa caminhada, porque já são seis anos de Mojubá, eu percebi o quanto esse trabalho realmente é importante. As pessoas de fato aproveitam para tirar dúvidas, recebo muitas ligações, inclusive de pessoas que não são do candomblé, mas que tentam entender como funciona. Isso para mim é certeza de que eu estou realizando um trabalho sério e que está atingindo seu objetivo, tirando as pessoas desse lugar de ignorância e de preconceito.

Lívia Oliveira — Como você vê o papel do rádio hoje em meio ao avanço das redes sociais e das plataformas digitais? E o que você acha que o rádio pode oferecer ao público que o jornalismo digital, sozinho, não consegue?

Cristiele França: Acho que o principal é a possibilidade do debate. Quando aquilo vem escrito, você vai ler e vai debater na sua roda de conversa com seus amigos, com sua família. O rádio dá a possibilidade de estarmos dando a informação agora, e se você quiser, você liga, participa, discute, debate, traz o seu ponto de vista e assim a gente vai tornando a comunicação mais democrática.

Eu acho que esse espaço do rádio é o único espaço que nenhum outro veículo lhe dá. Se você pensar na TV é a mesma coisa, você também tem as mesmas informações, mas você vai debater com quem? A gente sabe que nossas mais velhas têm o hábito de sentar na na frente da televisão para tentar discutir ou responder com os apresentadores, mas a comunicação não flui. No imediatismo do jornalismo ao vivo, o rádio te dá essa possibilidade. O jornalismo também traz essa abrangência internacional, macro, mas essa possibilidade de interação em tempo real eu acho que só o rádio tem.

Lívia Oliveira – Para quem deseja seguir carreira no rádio, principalmente meninas e mulheres pretas, quais seriam seus conselhos?

Cristiele França: Primeiro é persistir, porque não é fácil entrar no mercado. É muito fechado, temos poucos veículos de comunicação, poucas empresas de rádio, se for pensar aqui na Bahia, mas não é impossível. Eu lembro bem que uma vez, antes de fazer o Mojubá, uma senhora ligou para rádio dizendo que era a minha vizinha e que me via passar com minhas vestes de candomblé na porta dela indo para o terreiro, e que ela me usava em sala de aula como exemplo para as meninas e adolescentes, para quem ela dá aula.

Não é fácil, as faculdades são caríssimas, a gente tem as duas universidades públicas, mas devido a nossa qualidade de ensino, somente as famílias mais abastadas conseguem colocar seus filhos nessas universidades. A gente sabe de todo esse cenário, mas ainda assim é possível fazer curso técnico, é possível acreditar que aquele espaço ali é para todos.

Se eu fosse dar uma dica em relação a forma de se comunicar, estando já inserido nesse mercado, é: seja você mesmo, seja seu eu natural, admita quando você não souber alguma coisa, busque informações e traga de novo. Eu acho que essa é a melhor forma de você construir uma relação verdadeira com o seu público ouvinte.

Não tem como você vestir um personagem para ser uma apresentadora, para estarem falando na rádio, e quando você sair dali você ser outra pessoa. Isso vai funcionar durante o tempo, mas depois você vai perceber que a sua verdade não está ali e você vai cansar, o seu público vai cansar também. O ideal é fazer do seu jeito, criar sua identidade para que o seu público goste de você do jeito que você é e que você consiga transmitir a mensagem, que é o principal objetivo.

Atualmente, Cristiele é apresentadora do Mojubá, programa que inovou a ser o único no rádio baiano a tratar dos assuntos relacionados às religiões de matriz africanas. Na Metrópole FM de Salvador, Cristiele França discute, ensina e inspira todas as quintas às 19h.

Sobre o projeto Meninas e Mulheres Negras – Portal Black Fem

“Meninas e Mulheres Negras no Seu Tempo” é um projeto autoral do Portal Black Fem, que visa celebrar as potencialidades e contribuições das meninas e mulheres negras em vida, como forma de criar memórias e preservar as suas histórias e os seus feitos e inspirar gerações.

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