Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

Rayssa Molinari

Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.

Escritoras negras do afrofuturismo

Autoras são o futuro da ficção especulativa e criam novas narrativas sobre a população negra em diáspora

Supervisão: I’sis Almeida

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A junção entre ciborgues e ancestralidade não é apenas algo do futuro, já está sendo construída aqui e agora, e há universos para serem explorados em páginas de livros ou dispositivos de leitura. A destreza de misturar elementos de ficção científica, fantasia, história, cultura africana e tecnologia para imaginar futuros alternativos de pessoas negras é chamada de Afrofuturismo. Dentro deste universo, a literatura negra feminina emerge, desafiando narrativas predominantes há longos anos.

O movimento afrofuturista não é apenas cultural e estético; também traz cunho filosófico e social. Seu objetivo é reescrever narrativas do passado, presente e futuro através de uma perspectiva afrocentrada, abordando temas de identidade, resistência e empoderamento.

O afrofuturismo está dentro da categoria de “ficção especulativa”, que é um termo utilizado para abraçar a fantasia, ficção científica e terror. A autora de “Nosso Filho Bomani”, fonoaudióloga, criadora de conteúdos de leitura através do Instagram “Uma Leitora Negra” e mestranda em Letras, Laís Porto, pontua que a ficção especulativa negra é uma maneira de denunciar a violência racista.

“É também uma forma de recriar narrativas visando a construção de uma identidade étnico-racial positiva, porque a literatura negra não vai só fazer a denúncia, ela vai também se propor a construir uma identidade racial. A ficção especulativa consegue fazer isso”, observa Laís.

As histórias são repletas de mitologias africanas, avanços tecnológicos e futuros distópicos, oferecendo uma rica tapeçaria de narrativas que desafiam as normas estabelecidas. O gênero é um dos exemplos da Sankofa, símbolo originário de um provérbio da língua Akan da África Ocidental, que representa o ato de voltar-se aos erros do passado para que não possam mais acontecer, com o intuito de adquirir conhecimento.

“A ficção especulativa da literatura negra possibilita construir um novo futuro para a população negra enxergando o passado, validando as lutas, reivindicações, resistência, compartilhamento de conhecimento e sabedoria de uma forma intergeracional”, destaca Laís.

O termo “afrofuturismo” foi cunhado em 1994 pelo crítico cultural Mark Dery em seu ensaio “Black To The Future: Ficção científica e Cybercultura do século XX a Serviço de uma Apropriação Imaginária da Experiência e da Identidade Negra”. Aqui no Brasil, o gênero tem crescido e uma das autoras que o representa é a afrofuturista Lu Ain-Zaila, pesquisadora, pedagoga, mestranda em Letras e atualmente júri do Prêmio São Paulo de Literatura 2024.

Lu Ain-Zaila afirma que a ficção especulativa é uma mistura da ficção científica e a mitologia. Para a autora, o gênero literário traz a ancestralidade não como passado, mas sim como legado e especula o futuro com base no que já se tem atualmente. Nesse contexto, o ensinamento mitológico africano no Brasil faz falta.

“A gente precisa lembrar que, a partir do momento que a gente nasce no Brasil, a gente não tem como base uma experiência de entender-se e tornar-se negro, é o mesmo lugar euro-ocidental”, pontua.

Fomentar a construção de um pensamento cuja centralidade seja negra é uma das lacunas que a ficção especulativa negra propõe reparar dentro do contexto da educação brasileira. As principais influências da autora Lu Ain-Zaila, por exemplo, são autores e pensadores que narram e criam mitologias africanas.

“Você tem que estudar os autores negros, pensadores negros, história, cultura, filosofia, tem que se entender nesse lugar que você está, a diáspora. O que é ser um negro da diáspora? Essa é uma grande questão que ainda não foi grandiosamente enfrentada no Brasil, mas é um caminho”, explica.

Mulheres no futuro da ficção especulativa através do afrofuturismo

No afrofuturismo, as obras exploram a resistência e o empoderamento das mulheres negras, muitas vezes retratando protagonistas fortes e resilientes que enfrentam e superam adversidades. Através dessas histórias, as autoras não apenas imaginam o futuro, mas também criam espaços onde as mulheres negras podem ver a si mesmas como líderes e heroínas.

“Por mais que o escritor negro fale também sobre a mulher negra, só a gente que vive isso consegue compartilhar melhor das vivências, das dores, das alegrias. É importante ter a mulher negra falando sobre si mesma e, com isso, falar de todas também, entendendo que temos muitas vivências generalizadas”, destaca Laís.

A criadora de conteúdos também tem percebido aumento nas escritoras femininas no gênero, como a própria Lu Ain-Zaila e Kinaya Black. Livros como “(IN)Verdades” de Lu Ain-Zaila e “Eu Conheço Ozumi” de Kinaya Black são exemplos.

“Lu Ain-Zaila coloca mulheres negras como protagonistas, principalmente nessa área, que é muito mais predominante por homens negros. Se você for falar sobre afrofuturismo, várias pessoas vão mencionar Fábio Cabral, vão dizer outros nomes de escritores negros, mas poucos são os nomes das mulheres que se destacam”, observa.

A cena do afrofuturismo ainda é recente aqui no Brasil, e a inserção e presença feminina no gênero continuam em processo. Lu Ain-Zaila começou em 2015, investindo por conta própria e com financiamento coletivo. Para uma mulher de 46 anos vinda da periferia, trazer realidades brasileiras na ficção científica e avançar no mercado editorial sempre foi difícil, mas o importante é dar continuidade.

Para Lu, é muito importante ser mulher na literatura, pois era algo que sequer havia imaginado. “É um público que não está acostumado a se ver na sua própria cena de arte, na literatura, imagem, história em quadrinhos. Estamos construindo esse lugar. Para mim, estar na cena afrofuturista é muito importante. Nós temos sim presença de mulheres na cena afrofuturista literária. Não é fácil, é algo que está começando”, explica.

O essencial como autora é criar uma perspectiva de continuidade ao permanecer expandindo, influenciando e produzindo arte para e com pessoas negras. Com isso, as próximas gerações de escritoras trarão novas perspectivas e histórias, continuando a reimaginar o futuro e a desafiar as narrativas tradicionais.

Conselhos para meninas que sonham em ser escritoras

O impacto da literatura negra feminina no afrofuturismo vai além das páginas dos livros. Essas obras têm influenciado profundamente a cultura pop, desde filmes como “Pantera Negra” até séries de TV e músicas. A representação positiva e poderosa das mulheres negras nesses contextos oferece novos modelos de identidade e serve de inspiração para meninas e mulheres no mundo todo.

Comemorado no dia 25 de julho, o Dia do Escritor divide a data com o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e propõe refletir e homenagear escritoras. Para as futuras autoras negras, Laís Porto deixa alguns conselhos, como desconstruir a ideia de que a escrita é um dom e não o fruto da prática.

Sua sugestão é se debruçar nos estudos e participar de cursos, sobretudo ministrados por pessoas negras, para expandir a visão e técnica de escrita criativa. “Além de estudar, é preciso não ter medo do que vai acontecer. Muito já foi feito, muitas barreiras já foram quebradas. A gente vive num mercado editorial ainda difícil, mas já melhorou bastante. Querendo ou não, nós estamos em um momento em que o mercado está mais aberto, porque foi aberto à força!”, afirma Laís.

Lu Ain-Zaila, que já teve o conto “A Caixa da Senhora Futurista” publicado na revista francesa Omenana, enfatiza a importância da qualificação e do tornar-se negro quando o assunto é se inserir na literatura negra e, sobretudo, especulativa. “Sonhe, deixe a sua cabecinha voando, mas mantenha o pé no chão, planeje. Faça acervo do que você está fazendo. Quando estiver se organizando para a literatura, faça anotações de pesquisa e fichamento de conteúdo, livros, depois revisite os livros. Às vezes leio meus próprios contos já publicados, também leio conteúdos de colegas”, recomenda.

A expectativa se firma em mais meninas e mulheres no gênero futuramente. A literatura negra feminina no afrofuturismo enriquece o panorama literário, além de oferecer visões poderosas, criativas e transformadoras do futuro, com a promessa de que suas histórias continuarão a inspirar e impactar por muitas gerações.

Lista de leitura afrofuturista feminina para conhecer:

  • “Antologia Afrofuturista: Futuros Pretos Possíveis” (2023) por Henrique André
  • “(In)Verdades” (2016), “(R)Evolução” (2017), “Sankofia” (2018) e “Ìségún” (2019) de Lu Ain-Zaila;
  • “Raízes do Amanhã: 8 Contos Afrofuturistas” (2021) por Waldson Souza (Compilador), G.G. Diniz, Lavínia Rocha, Stefano Volp, Sérgio Motta, Kelly Nascimento, Petê Rissatti, Pétala e Isa Souza;
  • “Eu Conheço Uzomi” (2021) de Kinaya;
  • “Antologia Afrofuturismo: O Futuro é Nosso Vol. 2” (2021) por Kinaya Black, Junno Sena, Sarah Anicelo, Marcello Silva e Mateus Dumont.

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