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Sócio-fundadora, diretora executiva e de jornalismo do Portal, I'sis é jornalista e bacharel interdisciplinar em artes formada pela Universidade Federal da Bahia, além de técnica em comunicação visual e pós graduanda em Direitos, Desigualdades e Governança Climática. É criadora e podcaster do Se Organiza, Bonita!
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Sócio-fundadora e diretora de arte do Portal, Lavínia Oliveira é artista e designer, nascida em Salvador. Apaixonada por arte, música e tecnologia (como UX/UI e Front-End), busca constantemente por novas perspectivas e abordagens multidisciplinares. Suas criações abraçam a inovação e transmitem uma energia singular, por meio de experiências que mesclam criatividade e os campos da comunicação.
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Entre as muitas marcas de Salvador está o fato de que ela é uma das cidades mais antigas continuamente habitadas do continente americano e a primeira cidade planejada do Brasil. Mas há algo que encanta sua própria população e todos os turistas que a visitam: seu território é peninsular e o litoral é margeado pela Baía de Todos-os-Santos.
Uma cidade banhada pelo mar, cuja cultura foi fortemente influenciada pela África em muitos aspectos, torna-se, portanto, um centro da cultura afro-brasileira. É aqui que acontece anualmente uma das maiores festas populares do estado da Bahia: a festa dedicada a Iemanjá ou simplesmente “2 de fevereiro”, caracterizada pela entrega de presentes ao orixá, que são levados ao fundo do mar e também à beira d’água do Rio Vermelho, bairro mais boêmio da cidade.
Há diferentes versões sobre o primeiro presente para a Mãe d’Água, mas a mais conhecida é que, em 1923 ou 1924, pescadores da colônia Z1 de Salvador, diante da escassez de peixes para a subsistência, procuraram uma líder religiosa do candomblé para solicitar orientação sobre como fazer o pedido de fartura na pesca.
Por falar em Mãe d’Água, no Brasil, a divindade africana é conhecida por vários nomes: Iemanjá, Janaína, Iara, Inaê, Kaiala. Sua identificação varia conforme a vertente religiosa, mas ela é sempre associada às águas salgadas.
De acordo com Cleidiana Ramos, jornalista e doutora em antropologia, com foco em pesquisa das festas de largo, das religiões e da memória social, a primeira religiosa a ficar responsável pelo presente a Iemanjá foi Júlia Bugan, fundadora do terreiro Ijexá Língua de Vaca, que foi desapropriado para dar lugar ao Departamento de Polícia Técnica do estado da Bahia, no bairro do Garcia.
Cleidiana elucida que, hoje, a festa de Iemanjá virou uma mistura de diversas manifestações, inclusive não religiosas, mas seu eixo central são os pescadores e o povo das religiões de matrizes africanas. Para estes, “não interessa muito, entre aspas, o que está acontecendo no largo. O largo tem uma outra dinâmica…”, afirma.
Segundo a pesquisadora, para usar um termo mais novo, pode-se dizer que “a festa de Iemanjá é cheia de plot twists”, ou seja, não tem uma história linear e previsível, mas sim um percurso cheio de reviravoltas, mudanças inesperadas e apropriações por diferentes atores sociais. Ela lembra que, em uma época, a prefeitura da cidade resolveu chamar a festa de “Festa do Rio Vermelho”, gerando polêmica, sobretudo entre os praticantes das religiões de matriz africana.
Essa história complexa e dinâmica é o que torna a festa tão rica e fascinante, segundo Cleidiana, pois reflete a própria complexidade da sociedade baiana.
A pesquisadora conta ainda que prefere nomear as 12 festas de verão que antecedem o Carnaval como “festas de largo”, pois considera que, quando se diz “popular”, pressupõe-se que são festas culturais são de baixo valor ou que estão em oposição às festas da elite.
A tradição, que ocorre desde a década de 1930, só foi interrompida durante a pandemia de COVID-19, lembra Ramos. “Foi a única festa que manteve seus ritos sem nenhum tipo de operação. Aliás, uma das imagens que eu considero mais fortes é aquele barco, no Rio Vermelho, com a bandeira de luto”, afirma.
Consolidação da festa de Iemanjá no Rio Vermelho
Pouco se fala, mas a festa de Iemanjá já aconteceu na Península de Itapagipe, no Monte Serrat, região próxima aos bairros do Bonfim e da Ribeira. O Monte Serrat, segundo Cleidiana, é um local de culto à Mãe d’Água por excelência. Um artigo do jornal A TARDE de 1916 é o que indica o passado da festa.
Foto/Reprodução: A TARDE
O presente primeiro passava pela região e depois retornava ao Rio Vermelho, onde acontecia a festa de largo. Com o tempo, a festa se desloca para a orla atlântica, e o Rio Vermelho se torna o local central da celebração.
“Esse deslocamento segue o deslocamento de Salvador… Da ocupação de Salvador. Então, a orla atlântica assume tudo e ganha protagonismo. Como o Rio Vermelho está na orla atlântica, a partir da década de 1950, a festa passa a se consolidar por lá”, conta Cleidiana. “O culto a Iemanjá não era exclusivo de um local, mas Monte Serrat tinha um significado especial nesse contexto”, completa.
“Inicialmente, as festas são criadas pelo povo, mas depois outros segmentos da sociedade percebem seu potencial e começam a se apropriar delas”, afirma a pesquisadora. No caso da festa de Iemanjá, ela destaca que, embora seja uma festa dos pescadores, outros grupos também começam a participar e a influenciar sua dinâmica. Essa diversidade torna a festa um “festival religioso”, onde se encontram diferentes expressões de fé e devoção, incluindo manifestações de pessoas não filiadas a nenhuma instituição religiosa específica.
Ancestralidade, devoção e continuidade
Todos os anos, o Centro de Umbanda Baobá Folhas de Sultão das Matas entrega presentes a Oxum e a Iemanjá sob a liderança religiosa de Graciliano Neto, empresário e filho de Iansã. Ele ocupa a posição de sacerdote junto com seu companheiro, Janderson Alves, e Sultão das Matas é o guia-chefe da casa.
Essa é uma outra faceta da história da festa. No dia 1º de fevereiro, os terreiros de candomblé e casas de umbanda costumam entregar o presente de Oxum no Dique do Tororó. Os pedidos às orixás, explica Graciliano, variam muito de pessoa para pessoa. “Uns pedem saúde, outros caminhos, e por aí vai”, mas ele sempre alerta: “Meu conselho é que agradeçam antes de pedir qualquer coisa”.
De acordo com o líder do Centro Baobá Folhas do Sultão, Iemanjá, além de ser mãe de todos, é a protetora das águas salgadas, que representam vida, afinal, no mar há várias espécies vivendo. Graciliano conta que a oferenda do Centro inclui flores e perfumes — sem o vidro, para não poluir o mar — e que esse é um dos dias mais esperados na cultura de umbanda.
Allana Gama, relações-públicas e mestre em comunicação e cultura, descobriu há pouco tempo ser filha de Iemanjá. Ela iniciou seu contato mais profundo com Iemanjá através de uma casa de candomblé, que reforçou sua conexão com o orixá e seu cuidado com a espiritualidade. Ela ressalta não ser feita no candomblé, mas reforça seu respeito às religiões de matriz africana. Moradora do Rio Vermelho, viu durante muitos anos os moradores se unirem para decorar a praça da região e organizar um café da manhã comunitário no dia 2 de fevereiro.
Para a especialista em comunicação e cultura, “o culto aos orixás, de um modo geral, é a materialidade da resistência ancestral do povo preto. Apesar de todo o racismo e intolerância, a fé e a cultura persistiram”, afirma. “Pensando em Iemanjá, eu acho simbólico, não só por ser filha, mas porque se olha para Iemanjá sem o sincretismo”, completa.
Curiosamente, o 2 de fevereiro é a única festa popular de Salvador que não está relacionada à Igreja Católica nos dias atuais. Todas as outras festas são marcadas pelo sincretismo, termo que Cleidiana Ramos afirma estar bastante desgastado. Em vez de simplesmente endossar a ideia tradicional de sincretismo, ela propõe uma análise mais complexa e contextualizada, ressaltando a agência e a inteligência das pessoas envolvidas nas manifestações religiosas afro-brasileiras.
“Negar a inteligência desses homens e mulheres — que mantiveram seus cultos mesmo com o crime da colonização e da catequização — é negar que esses processos de agenciamento eram uma via de mão dupla”, afirma a antropóloga.
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