Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

Rayssa Molinari

Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.

Hip hop inspira meninas negras

Autoestima, consciência social e oportunidades de carreira são alguns dos principais impactos do movimento sobre as jovens negras

Por: Lívia Oliveira/Edição e supervisão: I’sis Almeida

Ilustração: Rayssa Molinari/Portal Black Fem — Todos Direitos Reservados, jamais reproduza sem os créditos

Foi na adolescência que Naianne Sena, 32, se interessou pelo Hip Hop. Para ela, o movimento era fascinante. Na época, a inspiração teve como impulso um curso para ser DJ. Após se inscrever, ela percebeu ser a única mulher na turma. Então, o que começou como uma curiosidade em aprender a manusear os equipamentos e a arte da discotecagem, abriu portas para Naianne, e ela se tornou DJ Nai Kiese.

“Tive a honra de ser a primeira DJ mulher a orquestrar batalhas de freestyle no mundo, e isso foi uma conquista que eu nem sabia que tinha alcançado até ter pesquisado dentro da minha carreira. Sou também a primeira DJ mulher do Hip Hop da Bahia”, conta Nai Kiese ao Portal Black Fem. Nai acrescenta ainda que compreendeu seu pioneirismo no estado através de pesquisa com pessoas mais velhas do movimento. Em meio ao seu trabalho de 12 anos, ela ainda inspira outras mulheres a iniciarem na música, passando a frente o que aprendeu.

“O Hip Hop vai fazer 51 anos agora em novembro e, no Brasil, 40 anos. E o Hip Hop da Bahia tem a primeira DJ mulher há 12 anos. Penso em como demorou tantos anos para existir uma representante feminina dentro desse movimento. Eu passeio dentro do cenário musical de uma maneira mais ampla quanto a estilos musicais, outras frentes musicais fazem parte do meu set, mas o Hip Hop é sempre muito presente”, conta DJ Nai Kiese. “Ele vem até a minha vida e me dá as ferramentas que são necessárias para essa luta diária, que é o compromisso com a finalidade de vir aqui e deixar o mundo melhor para os meus descendentes”, completa a artista.

Nai Kiese hoje é mãe de um menino preto e tem ainda como preocupação torná-lo uma pessoa consciente sobre os desafios que enfrentará na vida. “Ele se tornará um homem preto, uma figura que a sociedade odeia. Faz parte do meu compromisso ancestral deixar o mundo melhor não só para ele, como para os outros também”.

O Hip Hop, nascido nas ruas do Bronx, em Nova York, nos anos 1970, como uma expressão da juventude marginalizada, rapidamente se tornou um movimento de cultura global. No Brasil, o movimento encontrou terreno bastante fértil, especialmente nas periferias urbanas.

Além de ser uma profissão para Nai Kiese, o Hip Hop ressignificou a sua jornada. “Ele chega muito na minha vida nesse lugar de empoderar também. O Hip Hop me ensinou coisas valiosíssimas: o letramento racial, o letramento político social, entender e desenvolver um pensamento crítico social, além de o empoderamento estético e espiritual”, conta a artista.

A música como forma de expressão também chegou cedo para Liz Kaweria, soteropolitana que cresceu no município de Lauro de Freitas, vinda de uma família de artistas; o pai sendo multi-instrumentista e a mãe backing vocal do ministério de louvor da igreja. O caminho na música estava sendo traçado desde a infância, porém só em 2018 e 2019 Kaweria ela passou a levar a arte mais a sério.

“No começo, eu não sabia exatamente que tipo de arte queria fazer, mas sabia do que queria falar: de amor. A centralização das minhas composições é de fato o amor romântico e tudo que o envolve, seja a dor, a simplicidade, o sentimento, os medos, a devoção.”, explica Liz, que não define a si mesma como cantora de um gênero específico, mas reconhece beber do movimento Hip Hop e consequentemente, do rap

Com músicas que se destacaram em Salvador, como “CORRE’’ (produzida por Geeli), foi após participar de um projeto de “plugg”, subgênero do trap, que a artista adentrou ao cenário.

“Acho que o fato de ser uma mulher negra e estar viva, ter vontade e fome de viver e continuar fazendo o meu trabalho é a minha maior militância e privilégio. Sabemos que é uma questão social a mulher negra ser preterida e eu sempre quis fazer algo que eu pudesse me identificar, seja no proceder ou no desejo de viver algo específico. Nós merecemos amar e sermos amadas, já possuímos muitas lutas no dia a dia, e a música, para mim, sempre foi um escape, então eu gosto de fazer música que me transporte para um local diferente”, pontua.

Ambas dividem características em comum: o Hip jop que não só influenciou suas vidas, mas também foi uma forma encontrada para influenciar outras jovens. Em um país onde a imagem da mulher negra ainda é estereotipada, as mulheres no Hip Hop oferecem um poderoso impacto e contraponto à sociedade ao mostrar que ser negra é motivo de orgulho “As mulheres pretas são responsáveis por movimentações importantíssimas na nossa sociedade. Dentro do Hip Hop, não é diferente. O pioneirismo nas ações, a criatividade, a resistência e o ativismo são características excepcionais do que nós produzimos”, afirma Vitória Cardoso, produtora cultural e profissional de relações públicas.

Vitória sempre se viu liderando e organizando eventos em família e na comunidade, e foi quando passou a cursar Relações Públicas e teve contato com a matéria “Relacionamento com a comunidade”, que decidiu fundar o coletivo “Hip Hop Pernambués”. O coletivo teve as atividades voltadas para o Hip Hop dentro do bairro soteropolitano entre 2018 e 2020, e em seguida a produtora fundou o coletivo “Maloca Green”, que promove ações com protagonismo negro e LGBTQIA+.

“Sempre tive o rap presente no meu dia-a-dia, meu irmão sempre ouvia dentro de casa. Então passei a realizar pesquisas musicais de forma individual, conheci o movimento Hip Hop mais afundo, me apaixonei tanto pelo rap, quanto por outros estilos musicais. Comecei a frequentar batalhas aqui em Salvador, mas sempre me via realizando esse movimento de sair da minha quebrada, pra ir até o centro da cidade ter acesso a esse tipo de lazer. Foi dessa forma que eu decidi começar o coletivo Hip Hop Pernambués”, relata Vitória.

Para ela, há um grande papel do Hip Hop quando o assunto é empoderamento e conscientização da juventude. “Nas letras, na postura e na representatividade que as mulheres negras possuem e que são passadas de geração em geração. Os 5 elementos do Hip Hop (conhecimento, breakdance, DJ, MC, grafite) sendo representados e apresentados por mulheres negras têm um peso muito mais positivo, no que tange à referência e ativismo”, destaca.

A luta por espaço e valorização

BrúSeta (Feira), Vitória Cardoso, Nai Kiese, Liz Kaweria (Salvador-Ba)

Historicamente, o Hip hop é um gênero majoritariamente ocupado por homens. No entanto, desde o início, as mulheres negras tiveram um papel crucial na construção do movimento, mesmo que muitas vezes invisibilizadas. A presença feminina foi sendo explorada sobretudo nos anos 80 e 90, com nomes como Sharylaine, que montou o primeiro grupo de rap feminino no Brasil, o Rap Girl’s, e Dina Di, vocalista do grupo Visão de Rua. Ambas abriram caminho para que outras mulheres pudessem expressar suas realidades e demandas através da música.

Sharilayne — Foto/Reprodução

No entanto, os desafios do gênero feminino ainda são reproduzidos na indústria musical e se somam aos desafios enfrentados por artistas independentes, como a falta de apoio institucional e a invisibilidade midiática. No Brasil, os artistas que mais recebem visibilidade costumam ser do sudeste, conhecido como Eixo Rio-São Paulo.

O fenômeno onde muitas vezes, pessoas do sudeste são identificadas como pioneiras em movimentos historicamente também ocorridos pelo norte e nordeste brasileiro cria uma espécie de “sulização” das culturas. No Hip Hop não é diferente, e artistas dessas regiões são frequentemente associados como pioneiros, enquanto as contribuições de artistas de outras regiões, são muitas vezes ignoradas ou subestimadas.

Se para artistas que moram em capitais fora do Eixo Rio-São Paulo, como Salvador, criar uma carreira no movimento já é difícil, para quem é do interior, crescer se torna ainda mais difícil. Natural de Feira de Santana, a dançarina, compositora, cantora e MC, Bruna Victoria, 20, conhecida como BruSéta, conta que ser mulher vinda do interior é uma característica um tanto agridoce.

BruSéta se identifica como uma mulher branca/mestiça, posição que lhe põe uma maior passabilidade na indústria musical, e sempre busca trazer visibilidade e apoio a mulheres negras na música, sobretudo através de coletivos de Feira. Ela participou da sua primeira batalha de rima aos 17 anos quando começou a estudar na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador. Ao voltar para a cidade natal, fez contatos com as principais referências locais, passando a frequentar estúdios, até mesmo organizando uma batalha de rima feminina (a “Batalha das Pivetas Brabas”) e fazendo oficinas em colégios. Na sua vida, o Hip Hop veio através da poesia que escreve desde nova.

“É um desafio ter o trabalho reconhecido, para além de estereótipos, por conta da predominância masculina nesse cenário, principalmente falando de Feira. As meninas daqui que estão ligadas ao Hip Hop é uma parcela muito pequena. Além disso, aqui o rap não é valorizado como um arrocha, por exemplo. No interior da Bahia não é um mercado que vende tanto, os contratantes daqui não dão prioridade a esse gênero, principalmente se for uma mulher”, relata.

“As pessoas que estão participando do movimento acabam indo por meios independentes, indo a outros lugares ou criando sua própria rede, como a gente tem feito. É legal, porque todo mundo sabe quem é quem, mas ao mesmo tempo fica monótono, às vezes as vagas não são preenchidas, porque tem poucas mulheres para participar”, complementa.

A falta de valorização também é um tema apontado por Liz Kaweria. “O que mais me incomoda é a tentativa constante de diminuição do meu trabalho, acho que algumas pessoas, em especial homens, subestimam artistas femininas, sempre tentam nos colocar em uma caixa ou em clima de competição, como se fosse um grande perigo eles ‘disputarem’ espaço com uma outra mulher, então é definitivamente a parte mais chata para mim”, observa Liz.

Mulheres negras no Hip Hop influenciando a juventude

Os espaços do Hip Hop, sejam eles físicos, como eventos e oficinas, ou virtuais, como redes sociais e plataformas de streaming, são fundamentais para o desenvolvimento da autoestima e da consciência social. As artistas negras que vivenciam o Hip Hop não apenas inspiram a juventude negra feminina a lutar contra as adversidades, mas também as encorajam a assumir o controle de suas narrativas.

DJ Nai Kiese se coloca como exemplo vivo, uma vez que o Hip Hop mudou a sua perspectiva de vida e lhe fez alcançar lugares que sua versão de 10 anos de idade sequer havia imaginado. Um dos seus destaques é referente à autoestima, já que ela passou a enxergar sua beleza através do Hip Hop.

“A mulher negra é objetificada na sociedade e até então eu refletia isso dentro do meu pensamento abalado pelo racismo, essa falta de autoestima, eu dizia que não existia beleza em mim. E é então que o Hip Hop vem e me ensina sobre dizer que os meus traços negróides são lindos, meu nariz é bonito, minha boca é bonita, o meu diastema é lindo, o meu cabelo black é lindo. Ele me dá esse empoderamento estético”, afirma.

Já Vitória Cardoso aconselha as meninas que têm interesse em participar da cena do Hip Hop. “Sempre recebo mensagens de mulheres que estão começando na área, ou que admira meu ‘’corre. O conselho que dou é: comece, se joga, só vai! Se sentir o coração bater mais forte, é porque está no caminho certo. Prestar atenção nos detalhes, se especializar, fazer cursos pra que seu trabalho fique cada vez mais profissional”, enfatiza.

Liz Kaweria frisa a importância de se cercar de pessoas com quem compartilha o sonho ou se complementam, para que assim crie uma rede de apoio. Além disso, não ter medo de impor limites, não deixar que ninguém diminua seu trabalho, explorar sua arte e absorver o máximo de conhecimento também são algumas recomendações.

“Eu costumo dizer que a arte é ciumenta, ela exige de você uma devoção que se é algo que você quer fazer e transformar em algo rentável e estável, muitos sacrifícios serão feitos, então tem que ser firme. Não busque o reconhecimento, isso vem com o tempo e consistência de trabalho, faça arte porque você ama, porque você não consegue viver um dia sem pensar nisso. E o principal: ESTUDE. Busque referências fora do mainstream, entenda o tipo de arte que você quer fazer para não se deixar influenciar se o que você busca é a originalidade. Estude sempre, nunca deixe de estudar”, aconselha a artista.

Atualização em 27/08/2024: Esta reportagem foi revisada e atualizada com novas informações. Foram adicionados mais detalhes sobre DJ Nai Kiese, e a palavra “mestiça” foi incluída após “branca” na menção à entrevistada BrúSeta. O Portal Black Fem também acrescentou a palavra “nordestina” ao final da linha fina (subtítulo da reportagem), para indicar que a mesma conta com três fontes autodeclaradas negras e uma fonte autodeclarada branca/mestiça, mantida no processo de apuração para pluralizar as vozes ouvidas, e trazer uma perspectiva de fora da capital para o texto, ainda que esta não se considere negra. A atualização visa oferecer uma visão mais completa e precisa sobre as fontes.

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