Ilustração:
Designer de soluções e ilustradora do Portal, Rayssa é multiartista baiana, designer e historiadora em formação pela UNEB. Trabalha com projetos visuais e sociais voltados à negritude desde 2018, como no Diário da Mari, coletivo ZeferinaS. Usa a comunicação visual como uma ferramenta social por meio da ilustração.
Para tornar-se um criador de conteúdo, influenciador ou figura pública é preciso se preparar à possíveis ataques racistas
Por: Lívia Oliveira/Edição e supervisão: I’sis Almeida
Arte: Rayssa Molinari/Portal Black Fem — Todos Direitos Reservados, jamais reproduza sem os créditos
A era digital transformou as aspirações de jovens brasileiros sobre o futuro com a ampliação do uso das redes sociais, as tornando em um papel central na construção de sonhos e carreiras. Para muitos da Geração Z, o desejo de influenciar ou se tornar uma figura pública online é vista como uma oportunidade única.
Uma pesquisa da Inflr mostra que 75% dos jovens brasileiros sonham em se tornar influenciadores digitais, mas apenas uma minoria encontra inclusão no mercado. Já segundo o levantamento “Black Influence – Um retrato dos creators pretos do Brasil”, realizado por Black Influence, Site Mundo Negro, YOUPIX, Squid e Sharp, apenas 36% dos influenciadores negros consideram o setor inclusivo.
O estudo também aponta que quase 40% dos criadores pretos relatam experiências de discurso de ódio nas plataformas digitais. Esse dado contrasta com a média geral de 67% de criadores que afirmam nunca ter recebido discurso de ódio.
A busca por esse reconhecimento da criação de conteúdo ou influênica nas redes sociais, entretanto, pode vir acompanhada de desafios já conhecidos no mundo fora do digital. Jovens negros que buscam ocupar espaços e serem notados nas redes também podem enfrentar ataques racistas que vão muito além do simples hate online. Sendo influenciador ou até mesmo artista, o racismo se mostra.
Quando o racismo acontece no ambiente virtual, é chamado de cyber racismo. Essa tipificação é caracterizada pela manifestação de racismo no ambiente digital e por atos discriminatórios, preconceituosos ou de ódio racial realizados em redes sociais, fóruns, mensagens, vídeos, memes ou outros conteúdos online.
Quem infelizmente já se deparou com essa situação foi a cantora e compositora de 18 anos, ex-participante do The Voice Kids 2021, Clara Cintra. Acostumada a publicar momentos da carreira e da sua vida nas redes sociais, a artista conta que foi surpreendida ao abrir a caixa de mensagens e checar o conteúdo de uma mensagem enviada por uma seguidora.
“Eu postei um story dando bom dia aos meus seguidores. Uma moça, que já me seguia e seguia alguns amigos meus que são artistas também, reagiu dizendo que eu era feia e que eu tinha nariz de porco. Eu denunciei, obviamente, aí fiz um vídeo falando sobre isso e graças a Deus obtive bastante apoio”, relata.
A publicação conta com mais de 6 mil visualizações e quase 100 comentários. Clara também conta que, como pessoa pública e mulher negra, se sentiu no dever de divulgar o acontecimento. No entanto, o que mais a surpreendeu foi o fato ter ocorrido no dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.
“Foi uma coisa inesperada. Quando recebi a mensagem, eu fiquei chocada, mas a vida não para. No dia eu só fui cuidar daquela situação depois, porque eu tinha ensaio. Foi uma situação muito desagradável, nunca é uma situação positiva, e infelizmente a gente está o tempo todo suscetível a isso. É algo que não é normal, mas que é recorrente. O que me pegou um pouco foi ter sido no Dia da Consciência Negra”, Clara observa.
Os efeitos psicológicos do cyber racismo podem ser profundos. Um levantamento da Faculdade Baiana de Direito, do portal jurídico Jus Brasil e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), aponta que 60% dos casos de racismo e injúria racial julgados no Brasil nos últimos 12 anos envolvem mulheres, indicando que o impacto emocional é ainda maior para esse grupo.
Ao falar sobre o assunto, a psicóloga, Amanda Veiga, mestra em Psicologia Social, especialista em Educação e Direitos Humanos e Pesquisadora de Saúde Mental e Populações Quilombolas, reflete a obra “O Quilombismo – Documentos de uma Militância Pan-Africanista” do intelectual Abdias Nascimento. Ela pontua que na obra são discutidos os aspectos utilizados pela supremacia branca para reforçar o seu lugar de poder, dentre eles a comunicação, como as plataformas digitais.
“Quando a gente está falando de racismo online, a gente está falando de plataformas que se propõe a criar conexões a partir das comunicações. O racismo é um reflexo desse poder supremacista branco e vai afetar nossa saúde mental em múltiplos pontos, que podem ser esses espaços que reforçam o sofrimento emocional, um estresse crônico, uma ansiedade, podem acarretar até depressão”, Amanda observa.
Ela também acredita que a exposição ao racismo pode desestimular jovens a ocuparem o ambiente online, isso porque pode gerar novas inseguranças nos jovens. “O racismo tem atuado de forma a desmotivar jovens a sonharem, aniquilarem suas vidas, a colaborar para o adoecimento físico-mental das juventudes negras, quilombolas e indígenas”, aponta a pesquisadora.
“Há essa falta de perspectiva também quando a gente vai olhar os direitos para os profissionais ou influências negros e negras, a diferença salarial, a diferença da quantidade de influenciadores que as marcas hoje contratam, se for comparada à população branca. Isso tudo é são fatores que geram a desmotivação de estar ocupando esses lugares”, ainda acrescenta.
A saúde mental de jovens negros, na maioria das vezes, é prejudicada pela necessidade de lidar com danos que poderiam ser evitados ou reparados caso houvesse um combate mais eficaz por parte do Estado, segundo Amanda. Além dessa questão, também destaca a responsabilidade das empresas, instituições e big techs que administram as redes sociais em criar um ambiente mais seguro e menos nocivo para esses jovens.
“Nesses casos, na saúde mental, jovens negros em sua maioria acabam sendo responsabilizados por fazer enfrentamento e reparações a danos que poderiam ser prevenidos”, a pesquisadora enfatiza. “Também há a responsabilidade social dessas mesmas instituições para o combate do racismo e, principalmente, de como fazer uma prevenção para que esses jovens não tenham que ser fortes o tempo todo, porque também vem um discurso de que a própria juventude tem que estar preparada emocionalmente, só que o básico não é garantido”, acrescenta.
Recomendações sobre saúde mental
Embora tenha afetado Clara, a cantora comenta que a situação lhe deu força para continuar seu trabalho. Por trabalhar na internet há anos, ela conta que já se acostumou com determinadas situações e, caso não estivesse tão presente online, não teria tanto estômago para lidar.
Segundo a artista, o vídeo quebrou uma bolha e, sendo assim, ela recebeu apoio e acolhimento dos seus seguidores e não seguidores, que a partir do vídeo passaram a enviar mensagens de carinho e oferecer ajuda para medidas judiciais.
“Isso reforçou para mim, mentalmente, que nós temos que estar o tempo todo vigilantes a tudo que acontece. A gente acha que muitas vezes não vai acontecer com a gente, mas acontece, e como é que a gente reage a isso? A gente simplesmente se fecha, deixa de mostrar o nosso trabalho, as nossas coisas, a gente deixa de seguir nossos costumes e nossas crenças, as roupas que usamos, deixamos o nosso estilo de vida? A gente não pode, até porque viemos para ter resistência. Não pode ser apenas um discurso”, a cantora enfatiza.
Para quem se sente desamparado ou sozinho ao enfrentar o cyber racismo, Amanda Veiga recomenda que a pessoa participe de comunidades e grupos coletivos, que apresente práticas de aquilombamentos o reconhecimento das heranças africanas, originárias e quilombolas, e que discutam sobre a violência da branquitude atualmente.
“Além disso, para quem já esteja em acompanhamento psicológico, que leve para as sessões o sofrimento sentido, que assim ela consiga trabalhar com o profissional. Também é muito importante a gente incentivar o Estado a criar coletivos e fortalecer esses coletivos, para que essas pessoas consigam encontrar esses espaços de acolhimento”, sugere.
Medidas legais
A legislação brasileira tem avançado no combate ao racismo, com medidas como a criminalização da injúria racial e do racismo. Luíse Reis, advogada com foco em diversidade, equidade, raça e gênero, destaca que, judicialmente, é possível diferenciar um discurso de hate de um discurso racista. Caso o comentário ofenda a dignidade da pessoa, atribuindo qualidades negativas relacionadas a sua cor de pele, é considerado racismo.
“As implicações legais para quem pratica racismo digital são as mesmas implicações para o crime de racismo previstas na lei, que inclusive faz analogia aos crimes de ódio quando se fala da população LGBT+. O que difere um pouco do procedimento é que nesses casos precisa se aplicar a Lei de Proteção Geral De Dados, a forma como a prova vai ser constituída também é diferente”, explica.
“A extração precisa ter um perito, ou se aquelas ofensas forem via WhatsApp, sejam transformadas em ata notarial, que é um procedimento feito em cartório de notas. A vítima vai até o cartório, orientada por uma advogada, advogado ou por um defensor público, para que aquele registro, feito pelo tabelião, sirva de prova”, Luíse prossegue.
Em casos de racismo nas redes sociais, o primeiro passo é recorrer a uma orientação jurídica, passo que pode ser feito em observatórios de combate ao racismo. “Aqui em Salvador tem o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à intolerância Nelson Mandela (CRNM), tem outras instituições e ONGs que fazem esse mesmo tipo de trabalho. Além disso, é preciso fazer o registro do boletim de ocorrência. Atualmente a gente já tem uma delegacia especializada em racismo que fica no Pelourinho”, orienta.
Em casos de racismo que atingem um grupo, configurado como racismo coletivo, o Ministério Público pode ser acionado. Já a injúria racial, embora também seja um ato de racismo, refere-se a situações em que a ofensa é dirigida a uma única pessoa.
O papel das empresas
No caso do cyber racismo, também se volta a atenção da participação de empresas de tecnologia, como a Meta (detentora do Facebook, Instagram, WhatsApp, Threads, Messenger), que no dia 7 deste mês anunciou descontinuar o programa de verificação de fatos das suas plataformas, reiterando o seu compromisso com a liberdade de expressão.
“As plataformas deveriam ter responsabilidade objetiva, mas haja em vista a recente decisão da empresa Meta. A gente tem uma série de filtros que impedem de serem escritas determinadas palavras, mas ainda assim o racismo é um mecanismo tão engenhoso que consegue driblar filtros, consegue operar de uma maneira que inclusive existem grupos racistas dentro dessa plataforma”, destaca Luíse.
Esse é um pensamento que Clara também compartilha. “As plataformas digitais não são muito ativas no que tange a denúncia de racismo. Muitas vezes você sofre a violência e não consegue divulgar da devida forma por conta das plataformas. Eu publiquei meu vídeo em outra plataforma e ele foi derrubado, vou providenciar entrar com recurso”, analisa.
Avanços estruturais no combate ao racismo
Um marco importante foi a inauguração da primeira Delegacia Especializada de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa (Decrin) da Bahia, em Salvador, que aconteceu nessa última terça-feira (21). Localizada no Engenho Velho de Brotas, a unidade funciona dentro do Centro Policial de Cidadania e Diversidade (CPCD).
Com um serviço que opera 24 horas por dia, todos os dias da semana, a Decrin oferece investigação, assistência social e psicológica, além de suporte integrado de núcleos especializados como o de Combate aos Crimes Cibernéticos e o de Atendimento ao Idoso.
“Aqui tem segurança pública, mas tem assistência social, tem direitos humanos, com uma missão, muito forte, de garantir o direito de quem queira fazer uma denúncia. Agora temos mais um instrumento, inicialmente, aqui, em Salvador, mas nos próximos 10 anos vamos garantir que a intolerância religiosa seja banida do nosso estado. Preparamos nossas forças, tem muita competência nesse serviço”, destacou o governador Jerônimo Rodrigues durante a inauguração.
Os crimes relacionados a racismo e intolerância religiosa que ocorrerem em Salvador serão direcionados para uma delegacia especializada. O espaço contará também com cartório, sala de reconhecimento e apoio integrado de núcleos especializados e um posto de Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC), que oferece serviços de cidadania.
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