Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

I'sis Almeida

Sócio-fundadora, diretora executiva e de jornalismo do Portal, I'sis é jornalista e bacharel interdisciplinar em artes formada pela Universidade Federal da Bahia, além de técnica em comunicação visual e pós graduanda em Direitos, Desigualdades e Governança Climática. É criadora e podcaster do Se Organiza, Bonita!

Terapia racializada

Identificação e vivência no processo terapêutico são pilares fundamentais para uma melhor empatia e acolhimento

Supervisão: I’sis Almeida

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A gerente de loja, Jaíne Ramos, 27, nunca antes tinha se consultado com uma psicóloga. Embora considere sua procura um pouco tardia, não hesitou em procurar uma psicóloga negra. Ela acredita que todos deveriam ter acompanhamento psicológico e, no seu caso, o atendimento racializado fez toda a diferença.

“Desde que tomei a decisão de fazer terapia, minha preferência foi por uma psicóloga negra, devido à identificação. Pessoas pretas, especialmente mulheres, têm vivências diferentes das pessoas brancas, e eu queria conversar com alguém com quem me identificasse, que pudesse ter essa empatia e entender melhor o que eu estava sentindo”, explica.

Chamado de clínica racializada, o espaço onde pacientes negros são atendidos por profissionais negros, levando em consideração os demarcadores raciais, surge como uma abordagem fundamental para tratar adequadamente as questões de saúde mental da negritude. Essa abordagem considera as particularidades das experiências raciais e reconhece temas vivenciados pela população negra, como o racismo, um fator crucial de estresse e adoecimento mental.

Jaíne relata que, ao se consultar pela primeira vez com uma psicóloga negra, percebeu que a identidade racial da profissional influenciou diretamente sua confiança nas sessões, permitindo que ela se abrisse mais facilmente. “Teve uma sessão em que ela me trouxe um vídeo sobre uma empresária preta, porque estávamos conversando sobre ser uma pessoa mais incisiva e persuasiva. Essa empresária, que tem o meu jeito, não deixa de se impor, e foi nessa sessão que senti que é possível alguém entender exatamente o que estou sentindo”, conta.

Essa perspectiva da clínica racializada é vivida pela psicóloga (CRP: 03 21733) Andressa Rayana Rocha Neves, que atua na própria clínica. Usando-se como exemplo, Andressa explica que, antes de ser vista como mulher, baiana e nordestina, é uma pessoa preta. Além disso, afirma que um estudo mostrou que em menos de cinco segundos uma pessoa consegue estipular algumas informações sobre outra, e, nesse sentido, a raça é uma das primeiras informações percebidas pelo inconsciente.

“A gente está o tempo todo sendo afetado pela raça, então nossa relação com o mundo passa por esse lugar. Lucas Reis, que discute a psicologia preta e a clínica racializada, fala que o Brasil é um país anti-preto. Isso é duro de se ouvir e falar. Pensar que esse país, constituído majoritariamente por pessoas pretas, é anti-preto, significa que a vivência nessa sociedade passará pelo lugar da raça, e todas as outras coisas passarão por isso”, pontua Andressa.

Um dos pilares que a psicóloga frisa é a empatia. Andressa explica que isso se difere da compreensão e compaixão, pois vai além de simplesmente se colocar no lugar do outro, como é comumente entendido. Considerando que a verdade não é única, ela explica a empatia fazendo uma analogia com prismas. “Quanto mais próximo de você eu estiver, mais a minha parte do prisma será parecida com a sua, e assim eu conseguirei ser mais empática”, destaca.

Com isso, Andressa explica que não faz muito sentido buscar a escuta de alguém que não fala a mesma língua ou não vive as mesmas experiências. “Isso faz toda a diferença no acolhimento. É difícil acolher o que não entendo; por mais competentes e antirracistas que sejam, ainda existe uma limitação entre o que eu acho que é e o que eu vivo”, conclui.

O papel dos psicólogos negros na terapia

Na condução terapêutica, a racialidade precisa ser compreendida como um elemento fundamental, algo que deve fazer parte da base de qualquer análise clínica e psicoterápica. A psicóloga Alessandra Lopes também atende em uma clínica racializada focada em mulheres negras e observa que, há algum tempo, as pessoas achavam que isso era algo excepcional. Analisar a trajetória de alguém sem considerar os demarcadores raciais era visto como algo típico.

“Quando olhamos a estrutura social do nosso país, onde raça, idade, orientação sexual, identidade de gênero e território produzem o lugar social do sujeito e comunicam a forma como a sociedade o tratará e como ele enxergará os processos sociais, entendemos que isso não pode ser invisibilizado. Precisamos partir daí”, pontua.

Esses elementos, segundo Alessandra, também moldam a forma como uma pessoa percebe os processos sociais à sua volta e como se enxerga. Isso inclui, por exemplo, o tipo de trabalho que consegue acessar, como é tratada por instituições, pela polícia e pela sociedade. “Tudo isso precisa ser levado em consideração. Não há como olhar para isso sem pensar na racialidade do sujeito e sem considerar que seus processos subjetivos são produzidos a partir dessa conjuntura social e dessas experiências de vida com um lugar histórico”, destaca Alessandra.

Para Beatriz Novais, 22, essa perspectiva faz toda a diferença na terapia. Atuante como técnica de logística, ela está fazendo terapia pela primeira vez e confessa que normalizou tanto as vivências de uma mulher negra que nunca percebeu a importância de ter alguém que entendesse seu dia a dia de forma mais ampla.

“Comecei a notar que mudei muito minha personalidade por conta da terapia. Nunca gostei muito do meu jeito ou da forma como me expressava. Mas depois que comecei a fazer terapia, muitas coisas foram mudando ao longo do tempo, especialmente a forma como me via. Comecei a me amar mais e a reconhecer meu valor”, relata.

Ela também afirma que se sente confortável com sua psicóloga para debater temas cotidianos, como sua vida em casa, sentimentos no trabalho, comparações e inseguranças. Ao longo da terapia, Beatriz pôde perceber e lidar melhor com as situações que vivencia enquanto mulher negra, além de compreender suas próprias emoções.

“Sinto que ela me apoia; me sinto acolhida nas sessões, tanto por ela quanto por mim mesma. Temos conversas incríveis sobre várias situações que enfrentamos ao longo da vida. Isso dá a confiança que precisamos para encarar as dificuldades e não nos deixarmos abater”, revela.

A clínica racializada e a formação profissional

Alessandra destaca que a principal potência do encontro entre um profissional negro, no papel de cuidador, e um paciente negro reside no processo de identificação. Ela ressalta, no entanto, que esse encontro precisa ocorrer no contexto de uma clínica racializada. “A demanda racial precisa estar colocada no lugar do profissional também, porque não são todos os profissionais negros que estão preparados para conduzir uma clínica racializada. A potência desse encontro está colocada no lugar do aquilombamento”, explica.

Para criar uma ponte entre pacientes que buscam terapia com profissionais negros e psicólogos que atuam em clínicas racializadas, surgiu a plataforma Pra Preto Psi, fundada pelas psicólogas e pesquisadoras Bárbara Borges e Francinai Gomes. A ideia é oferecer um espaço de cuidado especializado para a população negra, onde o racismo é tratado não como um detalhe, mas como uma questão central no processo de cura e autoconhecimento.

Andressa é uma das psicólogas participantes do projeto e conta que entrou nele logo após terminar a faculdade. Ela sentia uma grande inquietação sobre a abordagem psicológica e questionava bastante as práticas tradicionais. Desde a faculdade, já sabia que queria ter um foco maior em atender pessoas pretas.

“Queria entender essas demandas na prática, me voltar para esse público, mas não era possível fazer esse recorte na minha cidade. Como a habilidade de atender pessoas de todo o Brasil se tornou viável, foi possível colocar meu trabalho em prática. Encontrei o início do projeto e, desde o primeiro ciclo, percebi que a proposta delas era exatamente o que eu tentava fazer, e eu não precisava fazer isso sozinha. Encontrei outras pessoas tentando a mesma coisa”, enfatiza.

Na plataforma online, o paciente encontra uma lista de profissionais negros credenciados, bem como suas biografias, abordagens, informações do CRP, localidade e valores das sessões. Também há formas de contato. A “Pra Preto Psi” foi criada quando as fundadoras ainda estavam na faculdade e destaca a importância do espaço acadêmico como um pilar fundamental para o profissional que deseja seguir uma psicologia racializada.

Alessandra Lopes também se inscreveu na plataforma durante o primeiro ciclo. “Minha iniciação no debate racial na clínica de psicologia começou muito antes da minha inscrição no Pra Preto Psi. Na verdade, aquilo foi um encontro. O primeiro ciclo me surgiu e eu senti que era uma forma de me conectar a outros profissionais negros na psicologia, fortalecendo a própria rede de sujeitos, sejam profissionais ou pacientes, nesse foco”, pontua.

A plataforma é uma das formas de melhor debater o recorte racial na psicologia, que infelizmente não é amplamente discutido na formação acadêmica. “A formação em psicologia no Brasil ainda reproduz muitos moldes conservadores e coloniais. Há algum tempo, falávamos disso sustentados na ideia de que estávamos começando a olhar para essa pauta, mas hoje já não é essa a realidade. Temos pesquisas, núcleos de pesquisa, grupos, especializações, mestrado e doutorado que estão abordando isso de forma massiva”, aponta Alessandra.

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