Texto:

Lívia Oliveira

Jornalista do Portal, Lívia Oliveira é comunicóloga formada em jornalismo e escritora soteropolitana, apaixonada pela comunicação. Autora do romance "Coração Gelado", acumula passagens no Jornal A Tarde, Criativos.

Ilustração:

I'sis Almeida

Jornalista e bacharel interdisciplinar em artes pela UFBA. Criou em 2014 a página Black Fem no Facebook que chegou a reunir mais de 20 mil seguidores. Junto a Lavínia Oliveira, transformou a página num veículo jornalístico e de comunicação para adolescentes e jovens adultas negras. Além de fundadora do portal, é criadora do Se Organiza, Bonita! - comunidade e podcast sobre organização pessoal para mulheres negras e pessoas periféricas onde atua como consultora e mentora.

Quem come quiabo não pega feitiço!

Celebração baiana é marcada por dupla comemoração religiosa, sendo uma das mais significativas manifestações da resistência negra no Brasil

Por: Lívia Oliveira e I’sis Almeida

Todos Direitos Reservados – Jamais reproduza sem os créditos

A frase “quem come quiabo não pega feitiço” tem raízes profundas nas tradições afro-brasileiras, onde o quiabo é considerado um alimento sagrado, associado à proteção e à espiritualidade. Durante a celebração do Dia da Ibejada e de São Cosme e Damião, em setembro, o quiabo ganha destaque em pratos como o caruru, um tributo aos Ibejis, as divindades infantis gêmeas que simbolizam a inocência e a alegria da infância.

Nas culturas africanas, o quiabo transcende a mera culinária; ele é um poderoso símbolo de resistência e identidade cultural. Considerado um amuleto contra energias negativas e feitiços, seu consumo se transforma em um ato de proteção espiritual. Essa versatilidade também o torna um ingrediente querido em várias regiões do Brasil, especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro, onde o sincretismo religioso se revela como uma forma de resistência da população negra. Durante a distribuição do caruru, que homenageia tanto os Ibejis quanto os santos Cosme e Damião, o quiabo se torna o elo que une tradição e celebração.

O Dia de Ibeji, comemorado em 27 de setembro, carrega consigo um peso histórico significativo: ele perpetua o legado dos africanos escravizados que pisaram em solo baiano. Se, em qualquer sexta-feira, a comunidade se veste de branco e encontra caruru em diversos comércios, no dia 27 o prato ganha uma aura especial. É servido com não apenas arroz, xixim de galinha e feijão fradinho, mas também com pipoca, legumes, farofa de dendê e outros ingredientes que enriquecem tanto o valor nutricional quanto a apresentação do prato.

Recentemente, em 19 de setembro, a tradição do caruru foi reconhecida como patrimônio imaterial do Estado da Bahia, com a decisão unânime do Conselho Estadual de Cultura (CEC). Hoje, 27 de setembro, essa importante deliberação foi oficialmente publicada no Diário Oficial do Estado.

Distribuição de doces

Além do caruru, a distribuição de doces em celebração é bastante popular. As crianças recebem doces em honra aos santos, representando a generosidade e o cuidado com os mais jovens. Durante as celebrações em homenagem aos Ibejis, é comum oferecer às crianças cocadas, pirulitos, balas, paçoca, pé de moleque e várias outras guloseimas.

Conheça as origens 

Os Ibejis são divindades iorubás cultuadas como gêmeos, que simbolizam a dualidade, o equilíbrio e a força espiritual das crianças. Eles representam a união dos opostos, como o céu e a terra, e a energia vital que une todos os seres vivos. Na religião do Candomblé, os Ibejis estão ligados a Oxum, a orixá das águas doces e da fertilidade, que cuida das crianças. Na Umbanda, são reverenciados como entidades espirituais que protegem a infância e trazem alegria e leveza por meio dos Erês, espíritos infantis evoluídos que se manifestam para trazer alegria e bons conselhos.

Jaciara Ribeiro, Ialorixá do Axé Abassá de Ogum, afirma no documentário “Caruru dos Meninos”, um projeto documental experimental realizado por I’sis Almeida, Julia Moraes, Kinda Rodrigues e Camila Góes em 2014, que o culto a Ibeji já existia no território africano. “Quando uma mulher africana tem duas crianças gêmeas, ela é considerada abençoada; o ventre dela, para ser protegido, era entregue a Ibeji”, diz.

Ribeiro ainda explica que quem mais cultua Ibeji no Candomblé são as filhas de Oxum, pois Ibejis são seus filhos. “Quando você come a comida de Ibeji, você está comendo o sagrado”, alerta. Existem horas específicas para cortar o quiabo, e quem come já deve ter tomado banho e estar de corpo limpo, entre outras particularidades que demandam a espiritualidade da tradição.

Já São Cosme e Damião, sincretizados na Bahia com os Ibejis, eram irmãos gêmeos, médicos que viveram no Império Romano por volta do século III. São conhecidos por realizar curas sem cobrar por seus serviços. Eles morreram executados a mando do imperador Diocleciano, no século IV, durante as perseguições aos cristãos. A história religiosa dos gêmeos e a trágica morte os marcaram como mártires. Além de serem venerados como santos padroeiros dos médicos e farmacêuticos, São Cosme e Damião são invocados em orações para a cura de doenças.

Intolerância religiosa

No Brasil e na Bahia, as igrejas neopentecostais têm se feito cada vez mais presentes, especialmente nas regiões periféricas. Em 2012, Salvador foi declarada a quarta cidade do país em número de evangélicos. Dai Costa Ndanbulakossi, pedagoga e pesquisadora que também participa do documentário “Caruru dos Meninos”, afirma que a Bahia e o Brasil vêm passando por um processo de evangelização muito forte. “As pessoas associam o nosso culto a forças malignas”, alerta, mas também pondera que o tempo atual é um período em que as pessoas têm cada vez menos medo de cultuar a fé.

Quer dar caruru? Confira a receita para de 2 a 3 pessoas, para mais, é preciso aumentar o número de ingredientes:

Ingredientes

1 kg de quiabo, picado em rodelas finas

250 g de camarão seco (pode ser desfiado ou deixado inteiro, conforme a preferência)

1 cebola grande, picada

3 dentes de alho, amassados

1/2 xícara de azeite de dendê

1/2 xícara de azeite de oliva

200 g de amendoim torrado e moído

200 g de castanha-de-caju moída

Pimenta-do-reino a gosto

Sal a gosto

Coentro e cebolinha picados

Suco de 1 limão

Modo de Preparo

1. Preparar os quiabos: Lave bem os quiabos e corte-os em rodelas finas. Para evitar que o caruru fique muito viscoso, algumas pessoas costumam secar o quiabo após cortá-lo ou deixá-lo no suco de limão por alguns minutos.

2. Refogar os temperos: Em uma panela grande, aqueça o azeite de oliva e o azeite de dendê. Acrescente a cebola picada e o alho amassado, refogando até dourar.

3. Adicionar os quiabos e os camarões: Coloque os quiabos picados na panela com o refogado e misture bem. Em seguida, adicione os camarões secos (se estiverem inteiros, você pode hidratá-los um pouco antes de colocá-los na panela). Cozinhe em fogo baixo, mexendo ocasionalmente.

4. Adicionar os outros ingredientes: Quando os quiabos começarem a cozinhar e soltarem a viscosidade, adicione o amendoim e a castanha-de-caju moídos. Esses ingredientes ajudam a engrossar o prato e conferem um sabor único ao caruru. Misture bem.

5. Temperar e cozinhar: Tempere com sal, pimenta-do-reino e o suco de limão. Cozinhe por cerca de 20 a 30 minutos, mexendo de vez em quando para evitar que grude no fundo da panela. O ponto ideal é quando o quiabo está macio e o molho bem encorpado.

6. Finalizar com cheiro-verde: Quando o caruru estiver pronto, finalize com coentro e cebolinha picados a gosto.

Lembrando que o caruru tradicionalmente é servido com acompanhamentos. Pesquise e divirta-se nesse dia especial.

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