Ilustração: Leandra Gonçalves
Eu estava andando e escutei uma criança me chamar
Mas eu ignorei
Ela me chamou mais uma vez
E eu corri
Corri pra longe
Onde não pudesse mais escutar a sua voz dizendo “Mãe, vem me cuidar”
Eu estava assustada
Não entendia como eu tão nova podia ser mãe de uma menina de 7 anos
Isso me faria ter gerado ela aos 13
Continuei correndo
Corri
Corri
Até que tropecei e cai nos 20
Escutei aquela voz mais alta
“MÃE, VEM ME CUIDAR”
Olhei pra trás e percebi que aquela criança tinha me alcançado
Quando decidi levantar do chão e olhar pra frente me deparei com um espelho
E no meu rosto eu vi a menina
Foi ali que eu entendi que eu era ela e ela era eu
Eu sou mãe da menina que eu fui
E hoje ela me chamou pra cuidar dela
Cuidar de mim
Me limpar das marcas que o racismo deixou nela dos 7 para os 13
Que eu ignorei e só com 20 percebi que é preciso voltar no passado para ressignificar o presente
E assim prosseguir
Não sei qual impacto Sankofa, nome dado a essa poesia, lhe causou. Por isso, escolhi contar a história que ela carrega nas entrelinhas. Pois bem, a menina a quem me refiro, aos sete anos de idade, saiu do Rio de Janeiro para morar no Sul do Brasil. Antes da mudança, ela relaxou os cabelos, porém, ao chegar na cidade, não teve como continuar o alisamento porque não tinha uma franquia do salão. Ainda inocente, ela não imaginava os desafios que estariam por vir.
Ao chegar na nova cidade e na escola, ela se percebeu diferente das outras crianças. Perguntou para sua mãe porque só tinha ela de preta ali. Contudo, sua mãe, como forma de disfarçar o verdadeiro motivo e tentar permitir que sua filha fosse apenas criança, dizia: “Que maravilha! Você chegou para colorir esse lugar”. Mal sabia a mãe que seria impossível proteger a menina para sempre da difícil realidade que enfrentaria por ser uma única menina preta em diversos locais.
Depois de se enturmar com a sala, ela começou a frequentar a casa de algumas coleguinhas. Certa vez, foi nadar na piscina da residência de uma delas. Depois de mergulhar e voltar para superfície, notou que as meninas ficaram cochichando, rindo e apontando para o seu cabelo. Bateu o constrangimento e ela retirou-se da piscina. Foi ao banheiro para se olhar no espelho onde pode notar a diferença existente entre a raiz e as pontas do cabelo.
Triste, pensando no que fazer para sair daquele banheiro, ela pegou uma escova em cima da pia e tentou pentear os cabelos de um modo que abaixasse suas raízes. Sem êxito, se enrolou na toalha, voltou para o quintal e não entrou mais na piscina até a hora de ir embora. Decidida a não contar nada para seus pais e seguir em frente, assim o fez. Seguiu. Cresceu, mas continuou a enfrentar diversos casos em que a sua estética e cor eram usadas pelos outros para tentar diminuir a sua autoestima.
Apesar de seus pais lhe dizerem que ela era linda, ela não conseguia se sentir assim. Na adolescência, observou que muitos rapazes se aproximavam, se relacionavam com ela mas logo em seguida, partiam para namorar com garotas menos retintas, de cabelos cacheados ou garotas brancas.
Ela chegou a cogitar que a constatação sobre os rapazes sumirem de sua vida fosse coisa da sua cabeça. Custava em acreditar que fosse preterimento. Nunca conversa, certa de que devia se certificar se alguém concordava com ela, abriu-se com uma amiga que alertou: “achar que é isso é paranóia da sua cabeça, lhe impede de refletir a razão pela qual você está se sentindo insegura. Se você sentiu, veio de algum gatilho, logo é legítimo. Então, você deve investigar, olhar para trás e tentar descobrir o que é, mas nunca excluir o que você sente”.
“Olhar para trás”. Ao ouvir as palavras, veio em sua mente o símbolo adinkra Sankofa – um ideograma, um símbolo gráfico, ou signo para a área de estudos semióticos de um pássaro representado com a cabeça voltada para trás. A palavra “sankofa” também significa na língua Akan do povo Akan de África “volte e pegue” em português. Isso explica o porquê do pássaro, muitas vezes, ser representado além de com a cauda para trás, tentando alcançar um ovo. Aos vinte anos então, ela compreendeu que teria que voltar ao passado para cuidar da sua criança de sete anos. E, aqui, está ela e estou eu, criando diversas metáforas para dizer que você, talvez, precise, primeiro, cuidar da criança que você foi para entender a mulher que você deseja se tornar.
Além do adinkra, existem outras referências que me fizeram refletir sobre a necessidade de um cuidado de dentro para fora para com nós mesmas. Há um texto chamado “Vivendo de Amor”, da intelectual e ativista bell hooks, que diz: “Se passarmos a explorar nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso direito de amar interiormente, ou seja, a partir do momento em que conhecemos nossos sentimentos, podemos também conhecer e definir as necessidades que só serão preenchidas em comunhão ou contato com outras pessoas”.
Assim como eu, precisei cicatrizar feridas infeccionadas pelas pancadas levadas no caminho, talvez, você também precisará. Por isso, te faço um convite: que tal “Sankofar”? Tornar o adinkra em verbo e praticá-lo ao longo da vida? Esse é um termo que criei, por incrível que pareça, associando a palavra Sankofa ao jargão “é hora de morfar” da franquia de entretenimento Power Rangers (risos). “Sankofar” é se colocar em um estado de autoinvestigação, voltar no passado para ressignificar o presente e, assim, trilhar o futuro, conseguindo de maneira consciente, se amar em primeiro lugar.
Deixo aqui um agradecimento à minha crusha Giovanna Amabile, que me ajudou à “Sankofar” para assim prosseguir. Sigo prosseguindo.