Ilustração: Joyce Pereira
A civilização ocidental valoriza a escrita e utiliza do início de seu uso para marcar uma divisão histórica – classificam povos sem escrita ao âmbito da “pré-história”. Em sociedades que mantêm a tradição oral como principal forma de transmissão, a fala se torna sagrada e seu pronunciamento pode construir ou destruir, já que cada palavra carrega um peso.
Com o passado escravocrata, a transmissão dos acontecimentos pela oralidade se estabeleceu e diversas histórias de ancestrais sobrevivem até os dias de hoje. Entre elas, está a Matriarca dos Palmares, Aqualtune. Foi uma princesa africana, filha do Mani-Kongo (rei do congo), Nvita-a-Nkanga. No final do século XVI o reino de seu pai foi invadido por um grupo conhecido como jagas, mercenários a serviço de traficantes de escravizados. Imediatamente um contra ataque foi iniciado, a princesa tomou controle da frente de batalha e com aproximadamente 10 mil congoleses, entre homens e mulheres comandou o que posteriormente seria nomeado como Batalha de Mbwila.
Infelizmente, a nação africana perdeu a batalha e a captura de Aqualtune foi inevitável. Derrotada e aprisionada foi levada para o mercado de escravos e redirecionada para um tumbeiro – navio de pequeno porte – que a trouxe ao Brasil. De acordo com Brincando e Ouvindo Histórias, material voltado para docentes elaborado pelo Neinb (Núcleo de Apoio à Pesquisas em Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro) da USP, a princesa desembarcou em Recife, Pernambuco, no ano de 1597.
No mesmo ano de sua chegada, um grupo de 40 negros fugidos chegaram à Serra da Barriga, um lugar repleto de palmeiras, e lá começaram o que viria a ser o quilombo dos Palmares. Aqualtune era forte e saúdavel e por isso foi vendida como escrava reprodutora – ou seja, aquela que poderia gerar filhos e ter relações sexuais com outros escravos. Ao ficar grávida foi vendida para o engenho de Porto Calvo, no Sul de Pernambuco onde ouviu falar sobre o local que reunia africanos livres, também conhecido como Angola Janga (Minha Angola Pequena).
Nos últimos meses de gravidez comandou uma fuga para o quilombo juntamente de outros escravos e obteve sucesso. O local possuía um grande espaço que abrigava diversos povoados fortificados, os ex-escravos se organizavam para a formação de um estado negro em meio à selva. Os rituais africanos e seus costumes originais foram mantidos, dessa forma, o governo de cada região era dado àqueles que em África haviam sido líderes.
A autora Sandra do Nascimento, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA – USP explica que Aqualtune ganhou o comando sob um dos territórios quilombolas por dois motivos: sua ascendência nobre e seus conhecimentos políticos, organizacionais e estratégicos de guerra. Com sua liderança, auxiliou na consolidação do refúgio e deu à luz a filhos guerreiros, Gamga Zumba e Gana Zona. Ela também teve uma filha chamada Sabina, mãe de Zumbi – que seria reverenciado como um dos maiores líderes negros do Brasil.
A região que Aqualtune, avó de zumbi, vivia foi atacada no dia 21 de setembro de 1677. Depois dessa data, os registros históricos que se referiam à matriarca dos palmares deixaram de aparecer. Já idosa, ela não foi encontrada no conflito e não se sabe como e quando ocorreu sua morte. Como relata o historiador e pesquisador brasileiro, Clóvis Moura: A primeira investida foi sobre a cerca de Aqualtune, mãe do rei Ganga Zumba. Imediatamente atacaram a cerca, tendo morrido muitos negros e ‘surpreendido 9 ou 10’, não encontrando, porém, a mãe do rei que conseguiu desaparecer.
No dia 20 de Novembro, a escritora Sara Messias realizou o lançamento de seu livro, um romance histórico chamado “Aqualtune”. Com base em suas pesquisas sobre a Princesa dos Palmares, misturou fatos reais com fantasiosos. Em entrevista, evidencia que ainda não foram descobertos registros que comprovem a existência de Aqualtune em relação à África. Portanto, seguiu indícios que já haviam sido estabelecidos aqui no Brasil, como referência principal o livro de Décio Freitas, República dos Palmares.
Resgatar as tradições orais e a história de nossos antepassados é trilhar o caminho do pássaro ancestral – Sankofa, já que esse conteúdo não chega até nós de forma natural, como deveria ser. Para a construção de um futuro mais rente à África é necessário espalhar essas histórias para os nossos iguais e pensar nas próximas gerações, nas crianças. É preciso fazer com que esse conhecimento às atinja desde cedo, e a melhor forma de fazer isso é pela oralidade.
É essencial repassarmos o que aprendemos para que no processo de amadurecimento as crianças pretas não se estranhem por não se identificarem com a branquitude. Elas saberão que descendem da realeza, de reis e rainhas que deixaram um legado grandioso, como Aqualtune, a princesa de Palmares.